Ford Edsel / Wikimedia

Ford chocou o mundo automotivo quando, dias atrás, oficializou sua decisão de não investir mais no desenvolvimento de carros de passeio nos Estados Unidos e focar seus investimentos locais nas picapes e utilitários esportivos. Em um primeiro momento, a decisão pode parecer lógica e acertada do ponto de vista mercadológico. Afinal, faz todo sentido ouvir os consumidores e entregar exatamente o que eles querem. Contudo, essa estratégia remete a um velho fantasma da marca.

No início dos anos 1950, a Ford começou a desenvolver um modelo para rivalizar com os Pontiac, da General Motors. Pôs em prática uma extensa pesquisa entre consumidores para saber tudo o que eles queriam em um automóvel. No final de 1957, após investir mais de US$ 250 milhões em pesquisa e desenvolvimento, ferramental e expansão de fábricas, além de uma maciça ação promocional e publicitária, o Ford Edsel chegou aos concessionários da marca. Ocorre que o sedã, concebido para ser exatamente como os potenciais compradores queriam, fracassou catastroficamente. O carro não tinha a qualidade esperada e seu design de gosto duvidoso gerou piadas, principalmente dirigidas ao formato peculiar da grade dianteira, que era associada a uma tampa de vaso sanitário e até ao aparelho genital feminino. Vendeu uma fração do esperado, durou apenas três anos – ainda assim por um acordo com concessionários – e, desde então, virou caso de estudos dos profissionais de marketing do mundo inteiro.

O “caso Edsel” mostra os riscos de se tomar decisões baseadas unicamente nos movimentos do mercado, por mais que isso possa parecer sensato e pragmático. Algumas vezes, análises frias dos números e métricas podem render uma boa foto do que está acontecendo, mas a imagem pode representar um fenômeno momentâneo. Foi exatamente o que aconteceu com o Edsel. Entre o início do seu desenvolvimento e a sua chegada às lojas, o gosto dos consumidores mudou e a preferência por carros menores se tornou dominante. Além de feio e mal-ajambrado, o novo sedã chegou em hora errada. A realidade da época em que foi lançado não era a mesma de quando começou a ser desenvolvido.

Picape Ford Ranger
Picape Ford Ranger

Passados 61 anos, a Ford volta a tomar uma decisão baseada apenas no que os consumidores de hoje querem, acreditando que o cenário não sofrerá mudanças e que os norte-americanos estão irreversivelmente abandonando os outrora dominantes sedãs em favor dos utilitários esportivos e picapes. Assim como foi nos tempos do Edsel, essa decisão pode custar caro à companhia. O segmento dos sedãs tem recuado a cada ano nos EUA, mas ainda tem vendas significativas. Tanto que Volkswagen, Honda, Toyota e Nissan já se apressaram em dizer continuarão a desenvolver e vender seus automóveis normalmente naquele mercado.

Em 2017, mesmo com um recuo de 21% nas vendas, o Ford Fusion emplacou 209.623 unidades em solo norte-americano, volume significativo mesmo para o enorme mercado estadunidense. Numa comparação com o Brasil, o carro mais vendido por aqui no ano passado, o Chevrolet Onix, teve 188.654 exemplares comercializados. Logo de cara, a decisão da Ford entrega “de mão beijada” um enorme contingente de clientes seus para as concorrentes. Num mercado tão disputado, abrir mão de consumidores dificilmente é a melhor opção.

Ford Ka
Ford Ka

Para tornar a decisão ainda mais arriscada, a época atual assiste grandes transformações na indústria automotiva mundial, com os carros elétricos cada vez mais viáveis, o avançado desenvolvimento dos veículos de direção autônoma, a revolução no conceito de mobilidade proporcionada pelos aplicativos de celular e tantas outras tendências que podem mudar completamente o futuro do automóvel. Tomar uma decisão tão radical como está tomada pela Ford nos EUA, em um momento de transição da indústria automotiva global, pode ser um tiro no pé.

Em 2008, a Ford sobreviveu ao auge da crise que levou à “quebra” da General Motors e da Chrysler, especialmente graças às decisões acertadas do então presidente Alan Mulally, vindo da Boeing para dar um novo rumo à marca do oval azul. Naquela época, Mulally dizia que a Ford precisava depender menos dos SUVs e picapes. Exatamente o oposto do que foi decidido pelo presidente atual, Jim Hackett, que vai ceifar os sedãs do portfólio. Um dos dois está muito errado nessa história toda. E um fantasma chamado Edsel pode estar circulando livremente pelos corredores de uma tradicional marca de Dearborn.

Lá e cá

Ford EcoSport
Ford EcoSport

             As decisões da matriz norte-americana da Ford podem respingar por aqui. A marca mantém a quarta posição entre os fabricantes locais, sustentada principalmente pelo compacto Ka. O EcoSport, modelo com o qual a filial brasileira foi pioneira no segmento dos SUVs compactos, vem sendo ultrapassado nos últimos anos por diversos concorrentes. Para piorar as expectativas, comenta-se entre os fornecedores que a histórica fábrica paulista de São Bernardo do Campo pode ser fechada. A produção nacional da Ford seria concentrada em Camaçari, na Bahia.

A marca que garantiu seu espaço na memória afetiva dos brasileiros graças a modelos populares como o Corcel e Escort parece ter dificuldades de se reinventar. Ao invés de desenvolver produtos voltados aos mercados emergentes, como vem fazendo a General Motors, com os carros da plataforma GSV e a futura GEM (Global Emerging Markets), ou a Renault, com o Kwid, a Ford prefere insistir em modelos de origem europeia adaptados ao mercado nacional. Mais uma vez, a estratégia de Jim Hackett parece ser a de matar o mensageiro quando a notícia é ruim.

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