Volvo Padron

Sexta-feira, 29 de junho de 1984, campus da Universidade Federal do Rio de Janeiro na Praia Vermelha, na Zona Sul carioca. Um grupo de cerca de 90 estudantes de Comunicação Social da UFRJ, da UFF, da UERJ e da PUC partiu uma viagem rumo à Universidade Federal do Ceará, em Fortaleza, onde se realizaria a edição de 1984 do Enecom, o Encontro Nacional de Estudantes de Comunicação. A distância de 2.192 quilômetros entre as duas cidades não desestimulou os universitários, que encararam com a despreocupação típica da juventude a ideia de fazerem juntos um longo passeio de ônibus. Mas o mais inusitado é que a travessia – cerca de 5,5 mil quilômetros de estradas – foi realizada, ida e volta, a bordo de dois ônibus urbanos Volvo B58, com carroceria Ciferal modelo Padron Briza. Na época, esses modelos eram novidade no trânsito carioca, ficaram conhecidos como Volvo Padron e rodavam na linha Praça XV – Charitas (Niterói). Eram ônibus desenvolvidos especificamente para transporte entre bairros de uma mesma região metropolitana. Para explicar como acabaram sendo usados para ligar dois bairros tão distantes como a Praia Vermelha, no Rio de Janeiro, e Benfica, em Fortaleza, onde fica o campus da Universidade Federal do Ceará, é necessário recuar alguns meses antes do início da epopeia.

Volvo Padron

Em 1984, o Brasil vivia os estertores da ditadura militar. O sombrio general Figueiredo – aquele que dizia que gostava mais do cheiro dos cavalos do que do cheiro do povo – ocupava a presidência. Naquele ano, cansado de não votar para presidente, o povo foi às ruas em todo o país para apoiar as “Diretas Já“, em grandes comícios que agitaram as principais cidades brasileiras. Mas a emenda Dante de Oliveira, que restabelecia as eleições presidenciais diretas, foi rejeitada na Câmara dos Deputados num frustrante 25 de abril. No mês seguinte, a “ressaca cívica” ainda dava um ar modorrento à normalmente agitada Escola de Comunicação da UFRJ – carinhosamente conhecida como Eco. A faculdade reunia uma “fauna” exótica e heterogênea, que misturava gente vinda das diversas classes sociais e de todos os cantos da cidade. Estudantes de outros estados e bolsistas latino-americanos davam um toque cosmopolita à receita.

Em termos de política estudantil, a maioria dos alunos – se não era maioria, pelo menos era a parcela mais barulhenta – rejeitava a ideia de organizar um centro acadêmico convencional. Esse grupo mais unido e animado, conhecido na Eco como “A Panelinha“, defendia, de forma bastante anárquica e irreverente, a autogestão como forma de se fazer representar. Com esses ingredientes, o cotidiano da Eco era movimentado, por vezes, surreal e, eventualmente, beirava a insanidade. Nesse aspecto – a insanidade –, o local onde até hoje funciona a Escola de Comunicação da UFRJ tem história. No Século XIX, o imponente prédio foi sede do Hospício Pedro II, depois batizado de Hospício Nacional de Alienados. Para manter o “ambiente“, lá ainda estão, como anexos ao campus da Praia Vermelha, o Instituto de Psiquiatria da UFRJ e o Instituto Philippe Pinel.

Até que, no final de maio de 1984, apareceu num dos corredores da Eco um cartaz convidando para o Enecom. A oitava edição do Encontro Nacional de Estudantes de Comunicação se realizaria na primeira semana de julho, na cidade de Fortaleza. Quem colou aquele inocente pedaço de papel na parede certamente não tinha ideia do efeito que aquilo iria provocar. A notícia se alastrou e logo alguém mais pragmático sugeriu fazer um requerimento ao Governo do Rio de Janeiro para que cedesse um ônibus para levar os alunos da Eco até a capital cearense. No ano anterior, havia sido feita solicitação semelhante para um encontro latino-americano de estudantes de Comunicação em Florianópolis – e um confortável ônibus rodoviário foi cedido pelo Governo Brizola e conduziu confortavelmente cerca de 40 alunos da Eco à capital catarinense. Com tal retrospecto, conseguir um novo ônibus para ir a Fortaleza parecia uma barbada.

Um comitê de alunos da Eco foi até o Palácio Guanabara, a sede do governo estadual, e voltou de lá com a grande notícia: o ônibus para o Enecom cearense estava garantido. A novidade causou uma enorme euforia na faculdade. Não que “A Panelinha” estivesse interessada em participar dos debates e palestras que discutiriam os rumos da Comunicação Social e da política brasileira no evento estudantil cearense. O Enecom – que recebeu o singelo apelido de “Eneconha” – seria apenas um “álibi” para passar uns dias passeando em Fortaleza e fazer turismo com os amigos gastando pouco. Embora isso não passasse pela cabeça de ninguém, era um caso flagrante de viagem de lazer com subsídio público – sorte que, 35 anos depois, qualquer crime cometido na época já deve ter prescrito. Listas começaram a ser feitas com os candidatos à viagem. Depois, alunos da UERJ, UFF e PUC souberam da história e fizeram a mesma solicitação de transporte. Por isso, o Governo do Estado prometeu que dessa vez seriam liberados dois ônibus – um para a Eco, outro para as demais faculdades.

A Eco viveu dias de expectativa, até que chegou finalmente a data marcada para pegar a estrada. O dia 29 de junho de 1984 era uma ensolarada sexta-feira no inverno carioca e o campus da Praia Vermelha estava lotado de mochileiros – muitos com barracas de camping, já que o Enecom não previa alojamentos. Em meio àquela balbúrdia, o primeiro Volvo Padron cruzou o portão do campus, seguido de um segundo, absolutamente idêntico. Ambos com carrocerias Ciferal, encarroçadora fluminense que uma década depois seria incorporada à gaúcha Marcopolo e posteriormente passaria a se chamar Marcopolo Rio, pintados de branco com faixas horizontais vermelhas e azuis e as logomarcas da CTC-RJ, a estatal fluminense que cuidava de transportes coletivos. Quando os dois ônibus pararam em frente à faculdade, houve um instante de silêncio e estupefação, seguido de gritos, risadas e exclamações de incredulidade. Teria mesmo o Governo do estado enviado dois ônibus urbanos para levar 90 estudantes em uma viagem rodoviária de mais de 5 mil quilômetros?

Apesar de inacreditável, era a realidade. Pelo menos os vistosos coletivos eram novinhos em folha e “top” de linha. Os bancos azuis de plástico rígido, sem cintos de segurança, eram revestidos por uma fina camada de espuma. As janelas eram amplas e sem cortinas. Se ainda restasse alguma dúvida de que eram ônibus urbanos, lá estavam as indefectíveis barras metálicas no alto do corredor, onde os passageiros dos coletivos que viajam em pé se seguram. Não havia roleta, mas o assento do trocador, virado para o corredor, indicava onde ela seria futuramente instalada. Cada ônibus chegou com dois motoristas e um estepe dentro, ocupando boa parte do piso da parte traseira. Prudentemente, os motoristas portavam uma pomposa carta com vários brasões do Governo do Estado do Rio de Janeiro, muitos carimbos e assinaturas. Era uma espécie de “salvo conduto“, explicando que aqueles alunos iriam representar o povo fluminense em um importante congresso estudantil no Ceará e solicitando que as autoridades rodoviárias facilitassem a excursão do grupo.

Volvo Padron
Nenhum daqueles universitários tinha ideia que, poucos meses depois, os Volvo Padron marcariam época no transporte coletivo do Rio de Janeiro ao inaugurarem as novas linhas expressas urbanas, que saíam da Zona Norte e chegavam à Zona Sul através do Túnel Rebouças. Encurtaram tanto o tempo da viagem que estimularam alguns moradores dos subúrbios cariocas a passar a frequentar a praia de Ipanema, algo que causou certo estranhamento a alguns ipanemenses – mas isso já é outra história. Alguns dos que participaram daquela viagem ao Ceará acreditam que foi uma espécie de “prova de fogo” para os ônibus da Volvo antes da criação das linhas expressas via Rebouças. Se foi, parece que foram aprovados, pois logo acabaram virando “figurinhas fáceis” na cidade. Mas certamente ninguém da marca sueca ficou sabendo dessa inverossímil “viagem teste“.

Volvo Padron
Passado o susto inicial com o fato de ter de encarar em ônibus urbanos um trajeto tão longo – a previsão inicial era de 45 horas de ida e outras 45 de volta –, o jeito era embarcar. E a viagem aconteceu – felizmente, não ocorreram “baixas” e sobreviveram todos. O certo é que, pela quantidade de histórias inacreditáveis que gerou, essa “bus trip” Rio/Fortaleza/Rio ganhou ares de “delírio coletivo” – com todos os duplos sentidos possíveis. Por isso, é fundamental convidar quem estava a bordo para puxar pelas reminiscências e lembrar alguns episódios daquela saga ocorrida há 35 anos. Para acrescentar depoimentos ou fotos à reportagem e ajudar a relatar esse evento memorável, basta encaminhar ao e-mail contato@rodario.com.br.

Nesse mosaico de memórias, uma das poucas que permanece indelével para todos é a do próprio Volvo Padron, sempre no embalo da hipnótica “música tema” da viagem. Era uma espécie de “mantra“, que se repetia de forma contínua e interminável. Consistia em um longo “ó, ó, ó“, cantado em um coral em estilo gospel, seguido do refrão, que era também a única letra da canção, gritado em uníssono: “A bordo do Volvo Padrão!” – assim mesmo, com o Padron devidamente aportuguesado. Hoje aqueles universitários estão na faixa dos 55 anos e alguns têm filhos da mesma idade dos jovens destemidos que, naquele distante 1984, embarcaram em dois Volvo Padron no Rio de Janeiro, rumo ao Ceará.

Depoimentos

Volvo Padron

Minha mãe estava griladíssima com essa viagem da filhinha de 18 anos com os colegas de faculdade, de ônibus, para as longínquas terras cearenses. Depois de muito choro e ranger de dentes, ela acabou cedendo. Quando chegamos à Eco, já tinha uma muvucada de gente tentando entrar nos ônibus, aquela zona toda. Entre vários tipos exóticos, se destacava na multidão o nosso querido e saudoso Bussunda, sempre naquele ’modelito’ básico dele – bermuda abaixo da barriga saliente, sem camisa, cabelos compridos ao vento. Minha mãe me segurou pelo braço e vaticinou: ’com essa gente você não vai!’. ’Como assim, são meus amigos’, argumentei, fazendo cara de choro. Aí um monte de gente começou a gritar que eu tinha que entrar logo, senão iria perder o ônibus. Naquela confusão, aproveitei uma distração da mamãe e pulei pra dentro, pela janela mesmo. Ela, que quase teve uma síncope, tentou me agarrar pelas pernas e pensou que era a ultima vez que me via. Lembro bem da cara de desespero dela quando o ônibus partiu… ” – Ana Lúcia Leitão, consultora na área de marketing.

“No dia do embarque, meu pai me deu carona para o campus. Qual não foi nossa surpresa quando adentram os dois ônibus urbanos da Volvo. Primeiro comecei a rir. Imaginei então umas 72 horas naquele ônibus ’de rua’. Imediatamente voltei com minha mochila para o carro, mas alguns meninos desceram do ônibus para pegar a mim e minha mochila. Meu pai observava e ria. Como fui uma das últimas a embarcar, me sobrou a ’cadeira do trocador’” – Marcia Kaplun, jornalista.

Volvo Padron

Logo que entrou no Espírito Santo, já de madrugada, o motorista resolveu perguntar a um bêbado na beira da estrada como fazia para ir para Fortaleza… Acabamos indo para dentro de Vitória e perdemos mais de três horas para conseguir achar a saída da cidade. Alguns dormiam em redes, dependuradas nas barras metálicas do ônibus, mas eu lembro de conseguir dormir em um colchonete, no assoalho. Pelo visto, havia uma suspensão decente. Aliás, aqueles Volvo andavam muito bem. Tinham avisos de 60 km colados no vidro de trás, mas certamente tiveram seus limitadores desligados para a viagem e mantinham velocidades médias bem mais altas” – Henrique Koifman, jornalista.

Cada Volvo Padron tinha dois motoristas, que se revezavam na direção. Para evitar que dormissem no volante, conversar com o motorista era obrigatório. E as pessoas a bordo também se revezavam na função. Lembro de que, numa dessas conversas, um motorista disse que o mais longe do Rio que ele já tinha foi para São Paulo, mesmo assim uma única vez. E me perguntou se Salvador era depois da Bahia. Respondi que sim, Salvador era bem depois da Bahia” – Angélica Nascimento, jornalista.

Volvo Padron

Em algum ponto da Bahia, fomos parados num posto da Polícia Federal. Descemos eu, Bussunda e Henrique para negociar com o policial, que avisou logo que a viagem estava toda irregular. Os ônibus eram urbanos e não deveriam ser usados para viagens interestaduais – o que era mesmo verdade. De fora, o policial já vislumbrava a bagunça interna. Além do que, uma ‘blitz’ policial no veículo àquela altura do campeonato não parecia uma boa ideia. Argumentamos que éramos estudantes a caminho do Enecom, etc. Mas o cara fazia o maior jogo duro. Até que mostramos a preciosa carta do Governo do Rio de Janeiro – não lembro se era assinada pelo deputado Danilo Groff, pelo Darcy Ribeiro ou pelo Leonel Brizola –, que pedia a colaboração das autoridades públicas para nos permitir chegar ao destino. Com essa carta e com o argumento que já estávamos no meio do caminho – ou seja, teríamos que circular por toda a estrada de volta por dentro da Bahia –, o policial nos liberou. E ainda disse que iria ligar para os postos à frente para nos liberar a passagem” – Ivan Accioly, jornalista e assessor de imprensa.

Não tínhamos paradas certas pelo caminho, mesmo porque os motoristas evitavam as rotas mais óbvias, para escapar dos postos da Polícia Rodoviária. Os ônibus paravam sempre que alguém precisava ir ao banheiro, algo inexistente nos coletivos urbanos. As biroscas do caminho, que deviam atender uma dúzia de fregueses por dia, de repente tinham que servir 90 vândalos famintos de uma vez. O calote era geral, coitados… Numa delas, chegamos num boteco de beira de estrada e, depois de usar o banheiro, resolvemos ver o que tinha pra comer. A única coisa que parecia comível era um bolo de passas. Quando o atendente pegou o bolo para cortar um pedaço, as ‘passas’ voaram todas… A fome passou na hora, e ninguém encarou o pudim de leite, que voltou intacto para a vitrine e as moscas puderam repousar nele novamente. Em outra dessas paradas, o Zé Emílio resolveu tomar um banho e por pouco não foi esquecido, apenas com um short e uma toalha, em algum lugar do sertão baiano” – Marcello Monteiro de Carvalho Filho, publicitário e designer gráfico.

Foi a viagem mais inusitada de minha vida e, provavelmente, de todos que foram comigo. Eu era presidente do Centro Acadêmico da Faculdade de Comunicação da UERJ. Descobrimos que o pessoal da UFRJ tinha conseguido um ônibus para viajar ao Ceará, onde aconteceria o Enecom. Fiz contato com outras universidades e fomos até o Palácio Guanabara, aonde nos prometeram o segundo ônibus. Foi uma viagem insana, mas de grandes recordações. Em Petrolina, rolou uma partida de futebol ’histórica’ em um campo de areia às margens do rio São Francisco, com um ônibus de cada lado delimitando o ’campo’. Devia ter uns 30 jogadores de cada lado. Não faria hoje uma viagem assim, mas tenho certeza de que nenhum de nós jamais se arrependeu de ter embarcado naqueles ônibus” – Rafael Casé, jornalista.

Roteiro Rio/Fortaleza/Rio realizado pelo Volvo Padron

Na ida, era domingo e muitos não tinham tomado banho no sábado… Resolvemos parar para uma chuveirada num motel bem chinfrim de beira de estrada, em pleno sertão cearense. Era muita gente pra tomar banho e almoçar e ficamos lá mais de quatro horas. Negociamos quartos do motel para as mulheres tomarem banho e outros quartos para os homens, com as pessoas formando filas dentro para se revezar nos chuveiros. Foi uma zorra completa. Depois, limpinhos e cheirosos, almoçamos num posto de gasolina ao lado e voltamos aos ônibus” – Carla Paes Leme, jornalista.

Lembro que, no caminho, me deram uma pinga com mel. Eu bebi, bebi, bebi e… vomitei. ‘Mas eu tentei vomitar baixinho pra ninguém ver’, justifiquei, muito sem graça pela lambança que fiz a bordo. Muitos amigos gozam a minha cara por essa frase até hoje… Lembro das pessoas jogando sueca e pôquer em rodas intermináveis de carteado, para passar o tempo. E todos cantando sem parar!” – Maurício Lima, jornalista e produtor.

Esse evento se tornou mitológico, ao ponto de ninguém saber diferenciar a realidade da fantasia com 100% de certeza. Pelo que me lembro, foram quase três dias de viagem na ida e outro tanto na volta. A cada parada, fazíamos a felicidade dos botequins, pois só saíamos quando zerávamos os estoques de álcool no estabelecimento. Dentro do ônibus da Eco, havia claramente uma separação geográfico-social: ’Alto Padron’, ’Médio Padron’ e ’Baixo Padron’. Neste último, o clima era de uma enfumaçada boate, aberta 24 horas por dia, com muita bebida e música ao vivo – havia vários violeiros a bordo. Na frente, no ’Alto Padron’, as pessoas – inclusive o motorista que estava ’de folga’ – tentavam dormir. Já no ’Médio Padron’ ficava quem preferia conversar, contar piadas ou jogar cartas. Eu ia de vez em quando ao ’Baixo Padron’ me divertir um pouco. Quando cansava daquela ’festa’, voltava para a frente para pegar um fôlego e dar um cochilo” – Lealdo Lima dos Santos, advogado e publicitário.

Partimos a bordo de nossa espaçonave sobre rodas rumo ao desconhecido. Desconhecido mesmo, porque os motoristas nunca tinham saído do estado do Rio e não faziam a menor ideia de onde ficava o Ceará. Acordávamos com os primeiros sinais da aurora – o Volvo Padron era particularmente envidraçado e não tinha cortinas. Logo descobrimos que o sertão do Nordeste, em julho, é de um frio enregelante de manhãzinha. Depois da longa viagem de ida e de vários dias de farras e turismo em Fortaleza, chegou a hora de voltar. Chegamos em pleno dia de aula ao campus da Praia Vermelha. Descemos dos ônibus um tanto incrédulos, aqueles que podiam andar ajudando aos outros, alguns beijando o solo, não acreditando que viveram para reencontrar o lar… Não trocaria aquela viagem por nada. Foi uma aventura do começo ao fim – e uma aventura totalmente coerente, inclusive com sua época. Eram tempos em que estávamos começando a descobrir a liberdade, não apenas nós como o próprio país. Inclusive a liberdade de ir e vir. E, para desfrutar da liberdade de ir e vir, em nossa cabeça de garotada que só anda em bando, nada melhor do que ir de ônibus” – Luiz Henriques Neto, jornalista e autor teatral.

Tenho poucas lembranças daquela viagem – provavelmente por causa da cachaça Chave de Ouro, que bebíamos como se fosse água. Do longo trajeto, dá pra lembrar das redes de dormir penduradas, do esforço para manter o bom humor, das cantorias sem fim… A música ’A Bordo do Volvo Padrão’ – puxada pelo finado Marconi e provavelmente composta em parceria com o falecido Bussunda – era gritada repetidas vezes por toda a galera. De fato, aquele ônibus foi um personagem marcante da viagem” – Renata Moraes, jornalista da ANP.

Na verdade, a música ‘A Bordo do Volvo Padrão’ foi criação do colega capixaba João Moraes, que depois voltou a morar em Cachoeiro do Itapemirim. Embora aqueles ônibus não tivessem sido feitos para viagens interestaduais, as pessoas se viravam para conseguir dormir. Me lembro de ter viajado do lado da Renata. A gente revezava para dormir, deitando a cabeça um no colo do outro. Os felizardos e mais malandros jogaram seus sacos de dormir no chão e arrumavam lugares privilegiados para cochilar. E outros, como o Torreão e a Renatinha, amarraram uma rede nos ferros do ônibus, para dormir como se estivessem em um autêntico ’pau de arara’. Todo mundo que passava pela rede dava uma cotovelada no Torreão, só por ele ser tão ’espaçoso’…” – Heitor Pitombo, jornalista e músico.

Volvo Padron

A epopeia do Enecom no Volvo Padron foi algo que marcou minha vida como o que houve de mais próximo de viver um sonho imprevisto na vida real. Os três dias no ônibus até Fortaleza foram uma maneira de conhecer o Brasil dentro de uma espécie de nave. Aquele ônibus voou pelo sertão numa marcha incerta, entre noites estreladas na imensidão do universo profundo. Lá dentro, bebia-se, fumava-se, amava-se, fazia-se música (até uma em homenagem ao tal do Volvo, divorciado da marca, tornado humano). Poderia falar do que se seguiria à jornada que nos levou ao Ceará, do amigo virgem que perdeu a pureza com a grande musa da galera, da minha primeira experiência em dormir numa barraca ao relento num dos pátios da faculdade cearense, ou da nossa indolência, nossa atitude militante de não assistir a uma só palestra do grande simpósio e de conhecer só a vida dali, da gente, dos bandejões, dos baiões de dois e de tudo o mais. Do retorno, mais três dias no Volvo Padron, nada sei, pois estava já coroado do sentimento do mundo. E acho que voltei numa nuvem, inebriado pela vida” – Arnaldo Bloch, jornalista e escritor.

Eram tempos bem duros. Lembro que voltei tão sem grana que dividi uma coxinha de galinha com alguém… Na volta, descobrimos que um dos motoristas estava com a carteira irregular, mas parece que a tal ’carta do Brizola’ resolveu mais uma vez o problema. Lembro bastante da gozação dos motoristas dos ônibus interestaduais nas paradas da estrada, quando viam o letreiro “Fortaleza” improvisado naqueles ônibus urbanos, repletos de redes penduradas. E lembro de um monte de gente feliz, cantando e dançando o tempo todo, como se fosse uma interminável festa sobre rodas… Será que foi mesmo assim? Ou, passados 30 anos, é como eu desejo que tenha sido?” – Elisa Barcellos, jornalista.

Na volta, lembro que as barras de apoio para as mãos dos passageiros do Volvo Padron serviram para estender as pontas das redes e como varal de roupas, inclusive calcinhas e cuecas. Quando embarcamos para voltar, um do motoristas encheu a traseira do ônibus com uma quantidade de caixas de cachaça que só deve ter acabado agora. Um deles trouxe até um passarinho cearense pra casa” – Mauro Trindade, jornalista e professor.

Tive uma gastrite uns dias antes e acabei não pegando aquele ônibus. Jamais me perdoei por isso” – Affonso Romero, analista de comunicação.

Para acrescentar depoimentos ou fotos à reportagem, basta encaminhar ao e-mail contato@rodario.com.br.

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