Por enquanto é só um memorando, sem muitos detalhes de como tudo ocorrerá na prática. Mas o simples anúncio de uma “aliança estratégica” entre a Volkswagen e a Ford foi suficiente para surpreender e agitar o mercado automotivo mundial. Segundo as marcas envolvidas, não haverá troca de ações, aquisições ou incorporações, pois o acordo abrangeria apenas o desenvolvimento de novos veículos comerciais, como vans e picapes. Não será uma união completa como fizeram Fiat a Chrysler, que se fundiram no grupo FCA, ou ainda, algo como a própria Volkswagen e a Ford fizeram no Brasil nos anos 1980, com a criação da Autolatina, e em Portugal nos anos 1990, com a criação da Autoeuropa. De acordo com o que foi anunciado, será um relacionamento que preservará a independência das duas fabricantes, envolvendo apenas redução de custos e soma de sinergias, com cada empresa complementando a outra com seus pontos fortes. A Ford, por exemplo, tem tradição em produção de picapes, enquanto a Volkswagen domina o segmento de vans na Europa.
Segundo Thomas Sedran, diretor de estratégia do grupo Volkswagen, a aliança é fundamental em virtude das rápidas mudanças do mercado global. “Para se adaptarem a um ambiente desafiador, é da mais alta importância ganhar flexibilidade por meio de alianças. A potencial colaboração industrial com a Ford é vista como uma oportunidade para melhorar a competitividade global das duas companhias”, afirmou o executivo. A mesma linha seguiu Jim Farley, presidente de Mercados Globais da Ford, que destacou a importância da parceria frente aos desafios atuais. “Estamos empenhados em melhorar nossa qualificação como negócio e alavancar modelos de negócios adaptativos, que incluem trabalhar com parceiros para melhorar nossa efetividade e eficiência. Essa potencial aliança com o Grupo Volkswagen é mais um exemplo de como podemos nos tornar mais ajustados como negócio, criando ao mesmo tempo um portfólio global de produtos vencedores e expandindo nossas capacidades”, avalia Farley.
Passado comprometedor
O acordo ainda está envolto em mistério e sequer foi oficialmente assinado, mas as especulações sobre suas extensões são inevitáveis. As duas fabricantes vivem situações complexas de ordem institucional e financeira e não seria surpresa se elas vierem a estreitar ainda mais seus laços com o passar dos anos. A Ford acumula prejuízos mundo afora, fala em abandonar mercados que não considera rentáveis e radicalizou ao decidir focar apenas em picapes e SUVs no mercado norte-americano, deixando de investir no desenvolvimento de novos sedãs e hatches por lá. A Volkswagen, por sua vez, ainda não conseguiu se livrar completamente da enrascada em que se meteu ao fraudar dados sobre emissão de poluentes de seus motores a diesel, o chamado “dieselgate”. Além da imagem arranhada e do desfalque bilionário que as multas sofridas causaram no caixa da empresa, o grupo alemão sofreu mais um baque com a prisão do presidente mundial da Audi, Rupert Stadler, acusado pela Justiça de ocultação de provas.
Apesar dos benefícios indiscutíveis da aliança, a cautela das duas fabricantes diante da possibilidade de uma nova parceria é justificada pelo passado conturbado que as envolve. Duas uniões anteriores acabaram em separação. É o caso da Autolatina no Brasil, de 1987 a 1996, e da Autoeuropa em Portugal, que começou em 1991 e durou até a Volkswagen assumir 100% do capital social da empresa, em 1999. Em ambas as situações, a Ford foi a parte que saiu perdendo na dissolução do relacionamento. No caso do Brasil, quando a Autolatina foi encerrada, a marca do oval azul tinha menos da metade da participação no mercado de antes da formação da “joint venture”. Na experiência portuguesa, a Ford se retirou do negócio antes da virada do milênio.
O panorama atual, contudo, é bem diferente, como os próprios executivos das marcas admitem. O mercado global está cada vez mais competitivo e os desafios são mais complexos. Além do comportamento dos consumidores, a indústria enfrenta o desafio da eletrificação, das dispendiosas pesquisas com condução autônoma e da mudança no conceito de mobilidade, em que o automóvel próprio poderia ser preterido por uma condução compartilhada por meio de aplicativo de celular. O cenário automotivo mundial nunca foi tão favorável à superação de problemas passados e à retomada de velhos relacionamentos. Tudo em nome de um futuro próspero.